quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Dead Man - Uma releitura apocalíptica do western



Dead Man (1995) é um road movie do diretor cult Jim Jarmush, uma espécie de viagem ao ambiente selvagem do velho oeste, mas feita por um personagem contemporâneo. Nesse retorno ao western, o autor se apropria da reflexão típica do gênero cinematográfico (o pacto civilizatório) e promove um choque entre personagem/ambiente, conseguindo ilustrar bem uma situação própria do nosso tempo, ainda difícil de ser explicada: a "desterritorialização".

A história é simples, um contador chamado Willian Blake (interpretado por Johnny Depp) viaja para uma cidade do oeste americano em busca de um emprego reservado para ele na metalúrgica. Chegando ao destino descobre que a vaga já foi ocupada por outro e, perdido naquele ambiente hostil, se envolve numa confusão. Acusado de assassinato, Blake passa a ser cassado por homens que querem sua cabeça à todo custo e é gravemente ferido. Na fuga ele conhece um indio chamado Nobody (Ninguém), que acredita ter encontrado realmente o poeta inglês e sem poder salvar sua vida toma a responsabilidade de guiá-lo à morte.

No filme o enredo é o que menos importa, os personagens são todos apresentados alegoricamente, ampliando suas representações para além da narrativa. Num primeiro momento, pode parecer que o autor reduz a força alegórica ao explorar exaustivamente o clichê do gênero (homem branco civilizado, pistoleiro selvagem, índio xamã), mas em interação com características do mundo pós-moderno, percebemos o oposto.

Ao inserir dois personagens sem identidade cultural e enraizamento simbólico àquele contexto selvagem do western, Jim Jarmush faz uma releitura apocalíptica do gênero. Imagine só, um índio rejeitado por sua tribo (sem crenças fixas) resolve pegar a missão suicida de ajudar outro homem (praticamente morto) na passagem para outra vida. Há um sentido nessa missão? Ou uma busca por sentidos?

Apesar do diretor ressuscitar um gênero "que já deveria estar morto", todo o filme é uma espécie de ritual fúnebre da passagem  do western, e do personagem, ao mundo dos mortos. É como se dissesse que o gênero ainda não morreu, ou seja, a discussão sobre civilização e barbárie (principal conceito por trás) ainda é atual, mas agora produzindo mais incertezas.


Destaque


Outro ponto a se destacar é a bela fotografia em preto e branco do filme, dando o tom apocalíptico e hipnotizante à essa viagem espiritual (sem saída) do personagem em direção ao desconhecido. A trilha sonora, produzida por Neil Young especialmente para o filme, traz sons que sustentam o sentido imagens, como acordes de guitarra com timbres bem graves reforçando o peso do destino de Blake: a morte. Ao invés de gravar canções, Young produziu uma trilha sonora com sons de guitarra elétrica, violão, piano e orgão sobre as imagens, dando maior densidade à obra.





P.S.: Lembrei desse filme quando vi pessoas dizendo que Johnny Depp era um "embuste". Na hora comecei a pensar em alguns dos seus filmes e não demorou para lembrar de grandes personagens criados pelo ator. O contexto eu não me lembro bem, mas era o lançamento de um dos seus últimos filmes.

Não me propondo aqui provar o contrário, até porque é fácil identificar de onde parte o adjetivo, de um grupo que normalmente tenta se apropriar do status de ser espectador incomum. Essas pessoas não interagem profundamente com a obra de arte, ao contrário, mantêm com ela uma forma de conquistarem status por serem espectadores privilegiados e usam para se segmentarem na sociedade. O própria adjetivo embuste, usado sem argumentos que o sustentem, é carregado de preconceito de quem se vê num local privelegiado dos não enganados.

Aqueles que acham realmente que o ator Johnny Deep é uma enganação é que devem se esforçar para provar o contrário do que diz sua trajetória. Só lembrando que o ator criou vários personagens bem diferentes na sua trajetória e trabalhou com diretores consagrados. Deep tem uma das mais significativas parcerias do cinema nos anos 90, com o diretor mais autoral de Hollywood, Tim Burton. Trabalhou também com Oliver Stone, John Waters, Michael Mann e Jim Jarmush.  Enfim, a vida do ator pouco importa perto de sua obra. Mais uma última informação, só pra constar mesmo, Jhonny Deep já dirigiu o ator Marlon Brando.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O homem com uma câmera + Cinematic Orchestra


Quando Diziga Vertov criou em 1929 o filme Homem com uma câmera, tentava buscar um cinema genuíno, longe da influência do teatro e da literatura. No fundo Vertov queria o que todos grandes cineastas buscam, captar melhor a realidade.

Esse filme é a experiência prática de sua teoria conhecida como Kino-Pravda (cine-verdade) ou Kino-glaz (cine-olho), em que a câmera deve se comportar como o olho humano e captar a "verdadeira realidade". Fora da obra sua teoria parece bastante limitada ao contexto histórico, algo apenas como uma das primeiras teorias justificam o cinema documentário.

Contudo, no contato com o filme, vemos que o diretor encarou o desafio e os dilemas de outra artistas ao tentar mostrar a complexidade do que chamamos de realidade, sem procurar simplificá-la. Foi, assim, que ele tornou O homem com uma câmera numa dessas experiências que o cinema nos reserva de mais tocante, num filme sensação.

Na sua representação da "verdadeira realidade" ele não poupa recursos técnicos de edição para criar efeitos e imprimir seu tom ao cotidiano da Rússia dos anos 20. As imagens vão se alternando entre o nascimento de um bebê em detalhes, atletas jogando futebol em câmera lenta, carros passando rápidos pelas ruas, repetições de trabalhadores nas fábricas, mulheres nas praias, etc.

E a prova de que Vertov topou o desafio da complexidade é a presença do cinema nessa realidade, ou seja, o envolvimento do cineasta com aquelas imagens. Isso pode ser comprovado em imagens do câmeraman se equilibrando em uma torre para filmar, ou de uma moça recortando os negativos de um filme para montar.

O autor não quer apresentar uma imagem pura e acabada da realidade, mas ao contrário, abusa de da forma para deixá-la repleta de subjetividade e de sentido.

É impossivel ver esse documentário e não se deixar levar pelo ritmo das imagens que vão se sucedendo, consequentemente pelas sensações e sentidos que elas produzem. O ritmo é tão tocante que alguns artistas já se aventuraram à sonorizar a obra.

De fato, Vertov já fez o filme pensando no seu sentido ritmico, sonoro; ele escreveu indicações para trilha sonora a fim de que fossem executada por um pianista na projeção. O norueguês Geir Jenssen à frente da Alloy Orchestra utilizou essas instruções na composição de novas músicas para o filme em 1996.

Mas a versão do filme que indico traz mais que um acompanhamento sonoro. Traz uma releitura contemporânea da obra feita pela Cinematic Orchestra, um grupo inglês de jazz eletrônico especializado em criar ambiente sonoros, ou cinematrográficos. A banda foi convidada a produzir uma nova trilha para o Homem com uma câmera e como viam o filme como um "poema sinfônico" procuraram ressignificar a obra através da interação entre som e imagem.

E é isso que vocês podem comprovar abaixo: uma versão sampleada do ritmo que Dziga Vertov
encontrou na Rússia no início do século, carregada de improvisação jazzística e musica eletrônica. A banda é formada pelo músico, compositor e produtor Jason Swinscoe e compostada de vários instrumentistas virtuosos.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Revisitando Radio Flyer


Revisitar esse filme anos depois trouxe pra mim um desejo de justiça. Não como uma vontade de provar que o filme merece um lugar entre os clássicos, nem tanto. A idéia é bem menos pretenciosa: mostrar que a obra, vista por muitos na sessão da tarde, vale a pena ser revista e tem potencial para se tornar até um cult.

Radio Flyer é um filme divertido para todos, mas com um final que desagradou a maioria do público e crítica. Começa por aqui, ele é narrado em primeira pessoa e tem nisso sua "raison d'etre", ou seja, apoia na narração de Mike (Tom Hanks) sua multiplicidade de sentidos. E é esse elemento que enriquece a obra, ao mesmo tempo que gera insatisfação nos expectadores mais sedentos por respostas.

O enredo é mais ou menos assim: Mike resolve contar para os filhos sobre sua infância na Califórnia, onde foi criado juntamente com seu irmão, Bobby ( Elijah Wood), numa família simples, apenas pela mãe e o padrasto. Sua história tinha muitas recordações boas, mas algumas péssimas lembranças, principalmente na relação com o padrasto alcólatra. Ele vai contando como seu irmão mais novo foi sendo violentamente agredido pelo padrasto, até o momento em que, inspirado em uma lenda local, resolvem construir um avião, acoplando asas e um motor de cortador de grama em um vagão de brinquedo "radio flyer". Esse avião serviu para o caçula Bobby fugir de casa e se distanciar da padrasto violento.

Apesar do tom "fantástico" do fim do filme,  o personagem-narrador trata como normal seu irmão ter fugido em um avião improvisado e viver viajando pelo mundo. E é isso que mais incomoda a maioria dos espectadores, que tendem a negar o filme instantaneamente.

Cabe lembrar que Mike é o tipo de narrador conhecido por aí como não-confiável, no caso não pelo seu caráter, mas pelo envolvimento na narrativa. Suas lembranças são tão inconfiáveis quanto as nossas, que pela perspectiva da psicanálise, são marcadas por "fantasias", lembranças deformadas por processos defensivos.

Muitas hipóteses para solucionar o aspecto fantástico do filme tem sido elaboradas. As mais famosas são:

* O irmão mais novo morreu violentado pelo padrasto e Mike conta essa história por não aceitar a morte dele;

* O caçula Bobby sequer existia, seria um fruto da imaginação do narrador e existe simbolicamente como um rito de passagem dele da infância para a vida adulta.

Aceitar uma dessas hipóteses significa reduzir os sentidos do filme e seus potenciais. Por outro lado, formular outras não esperando por respostas definitivas, seja pela perspectiva psicológica ou de enredo já ampliam nossa experiência com a obra.


Outros elementos simbólicos dão forma à história, como o tratamento da imagem, que reconstrói o clima quente da Califórnia e confirma o calor daquelas relações familiares. E o mais interessante são as imagens do padrasto, chamado de "The King" pelos garotos, sempre mostradas de baixo para cima, não mostrando seu rosto. Tudo isso, confirma a história narrada como parte de uma visão individual, construida numa mente infantil e sob forte emoções.

Essa estética simbolista de Radio Flyer já mostra que o filme merece ser visto e revisto por todos, mas sob uma ótica menos moralista daquela dos críticos da época em que foi lançado. Como, por exemplo, a visão do crítico americano Roger Joseph Ebert, que foi um dos responsáveis por rebaixar a obra dizendo que "o filme deveria propor um final melhor para o abuso infantil".

RADIO FLYER (1992) 114 min
Direção: Richard Donner
Roteiro: David M. Evans

Blow-Up: depois daquele filme

Artigo que fiz para uma revista, um texto com formato híbrido, mistura jornalismo cultural e acadêmico. Coloco aqui mais para expor à crítica e poder olhar pra trás para saber onde evoluir...

O filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, chocou os artistas da época e preparou o ambiente para o tropicalismo


Explosão no sentido literal, a expressão “Blow-Up” empregada no título do filme de Michelangelo Antonioni (1966) significa mais. É uma técnica utilizada na revelação fotográfica para tratar da ampliação de uma imagem até se nível máximo, estourando os pontos que a compõem, mas revelando detalhes que não seriam notados normalmente. Mas o que isso tem a ver com Glauber Rocha?

Pego essa expressão de empréstimo para falar de um momento muito específico na cultura brasileira, o lançamento do filme Terra em Transe, em 1965. A obra causou enorme impacto no campo artístico da época, influenciando muitos artistas. E, isso, justamente porque trouxe uma espécie de “revelação explosiva” daquele contexto.

O que aparecia na tela não eram apenas delírios de um poeta, mas também a crise de consciência de vários brasileiros diante do golpe de 64. Desengano, desilusão, morte é disso que trata o transe de Glauber Rocha. A obra é construída como o epitáfio de um poeta em crise, em contradição, Paulo Martins. Mais que isso, mostra a perda de esperança do cineasta no Brasil, o não cumprimento da profecia presente no seu filme anterior: “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”.

Glauber coloca no filme uma identidade nacional descontínua, fragmentada através do delírio do protagonista. Ele mistura natureza com cultura tradicional e carnavaliza a história, criando assim um tropicalismo barroco. Terra em Transe lança a agressão ao espectador de cinema no Brasil e influencia artistas da época, preparando o país para o movimento Tropicalista do final dos anos 60.

A obra tocou profundamente alguns intelectuais que viviam a contradição da modernização conservadora do governo militar. A sensação promovida pelo filme instigou artistas da canção, como Caetano Veloso, e do teatro, como José Celso Martinez, a produzirem. Apesar de elementos estéticos novos para Glauber na arte desses tropicalistas, como a colagem de imagens pop, não há como negar outros semelhantes: a agressão ao público, a ironia e a presença do carnavalesco. O próprio compositor Caetano Veloso, já admitiu em seu livro, Verdade Tropical, sua influência pelo filme:

“Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. (...) E, à medida que o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade estavam à beira de se revelar. Portanto, quando o poeta de Terra em transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na platéia vi, não o fim das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim.”

O desamparo que a obra do cineasta do Cinema Novo produziu no espectador serviu como inspiração a estética de agressão ao público do Teatro Oficina. O fundador da companhia José Celso Martinez também declarou no seu livro, O Poder de Subversão da Forma, que foi “violentamente influenciado por Terra em Transe”:

“(...) um filme como Terra em transe, dentro do pequeno público que o assistiu e que o entendeu, tem muito mais eficácia política do que mil e um filmecos politizantes. Terra em transe é positivo exatamente porque coloca quem se comunica com o filme em estado de tensão e de necessidade de criação neste país.”

Resta lembrar que em 67 o tropicalismo de Glauber não tinha o humor que apareceu posteriormente no movimento estético antropofágico. O tropicalismo do cineasta é carregado de tensão da crise barroca, ele se dá de forma trágica, ritualizando a morte da esperança presente no Cinema Novo. Depois da Tropicália em curso, Glauber Rocha sabia de sua contribuição para o movimento, principalmente como inspiração, gostava de falar que a peça O Rei da Vela foi dedicada a ele. Em 1968 o diretor respondeu a um jornalista a pergunta que todos queriam fazer: “Você se considera um tropicalista?”

“O circo pegou fogo, mas eu estava na Europa. Quando voltei já encontrei o movimento em andamento, com muitos teóricos, críticos, precursores e inimigos. Ora o tropicalismo é o movimento mais tropicalista que existe. Vale tudo. Eu, no momento, estou pensando em fazer outra coisa, mas incentivo as descobertas tropicalistas (...) O tropicalismo nos liberta das manias européias e nos lança no pânico carnavalesco do nosso Brasil, onde a Bossa convive com a palhoça. Somente da consciência em chagas nascerá alguma coisa.”

1 - CORRÊA, José Celso Martinez. O Poder de Subversão da Forma (entrevista realizada por Tite de Lemos). Revista APARTE, n. 1, TUSP, mar./abr

2 - VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Cia. das Letras,

3 – Bentes, Ivana. Multitropicalismo, cinesensação e dispositivos teóricos. Tropicália - uma revolução na cultura brasileira